22.07.2019 |
Em 2014, a World Federation of Neurology (WFN), instituiu o Dia Mundial do Cérebro, a 22 de julho, com o objetivo de chamar a atenção para o papel do Cérebro na nossa vida e na descoberta do mundo.
Desde então, e a cada ano que passa, um tema novo serve a mensagem com que se pretende alertar as consciências para as grandes questões do Cérebro e para a importância da sua discussão na qualidade da vida humana. Foi assim que, em 2014, se inauguraram estas celebrações, sendo o Cérebro, enquanto órgão mágico, apresentado ao mundo como o centro da alegria e da tristeza, juntamente com o apelo para que se tornasse o alvo principal de investigação e de reflexão. Realizaram-se, nos anos subsequentes, comemorações tendo como temas as doenças que o envolvem e nos atormentam, nomeadamente a epilepsia e o AVC, ou o envelhecimento e os seus problemas, bem como as questões ambientais que urge resolver. Chegamos, hoje, ao tema deste ano, nada mais nem menos do que a enxaqueca, ou melhor dizendo: “Enxaqueca – uma verdade dolorosa”.
E porquê a enxaqueca, perguntar-se-á?
Em primeiro lugar porque a enxaqueca é a doença cerebral mais frequente a nível mundial, atingindo uma em cada sete pessoas. Depois, porque, para além do sofrimento físico e psicológico, pode provocar limitações graves na vida de uma parte significativa daqueles que dela padecem, sendo considerada pela OMS uma das cinco doenças mais incapacitantes. Finalmente porque, apesar destes números e do seu peso económico, o investimento na sua investigação e no seu tratamento está muito aquém do que acontece com doenças com menor impacto individual e social, havendo, assim, necessidade de uma chamada de atenção para a situação em que se encontram milhões de pessoas em todo o mundo.
Acresce que, nos países de maior fragilidade económica, a oferta de condições mínimas de diagnóstico e tratamento é claramente deficitária. Mesmo nos países mais desenvolvidos, o acesso dos doentes aos meios mais adequados e avançados, só possível em ambiente de maior especialização e diferenciação, conhece enormes assimetrias que decorrem das desigualdades socio-económicas de todos conhecidas.
Quantas vezes estes doentes, na sua larga maioria mulheres, sofrem a crise na solidão do seu quarto, cercados por um muro de um necessário e absoluto silêncio, fugindo à luz e ao som, à comida e aos cheiros, e são, para além disso, vítimas da incompreensão e da indiferença – quando não hostilidade – do mundo que os rodeia? Durante um, dois, três ou mais dias esperam que a tempestade amaine. Ultrapassada esta, regressam à rotina dos dias com a expetativa de que não volte tão cedo. Até que uma outra crise surge, de novo, umas vezes sem se fazer anunciar, outras sob a forma de sombras, luzes, enjoos, irritabilidade, sonolência – um pesadelo a preceder a dor. Porque a enxaqueca é muito mais que uma simples dor de cabeça…
E disso é testemunha a obra de muitos escritores e pintores que a utilizaram como tema ou fonte de inspiração, porque a conheceram ou porque dela ouviram relatos. Refira-se Lewis Carrol, autor de “Alice no País das Maravilhas”, que retrata, na ficção, o seu desconforto com as auras de que ele próprio sofria; recordem-se, ainda, alguns quadros de Van Gogh em que estrelas (como no poema “Será que alguém pode apagar as estrelas, por favor?”) e a distorção de imagens estão presentes e remetem, em última instância, para um imaginário associado às manifestações da doença.
Felizmente os investigadores e os clínicos não cruzaram os braços. Hoje a doença é muito melhor conhecida, no seu perfil, nas suas causas e nos seus mecanismos moleculares, o que tem permitido uma melhor abordagem no seu diagnóstico e no seu tratamento. O avanço mais recente deu-se em finais do século passado, quando a descoberta do possível papel da proteína CGRP (péptido relacionado com o gene da calcitonina) no desencadear das crises de enxaqueca, levou à pesquisa de substâncias que pudessem bloquear a sua ação. Tal veio a acontecer, já neste século, com uma nova geração de moléculas, largamente utilizadas em múltiplas doenças do organismo – os anticorpos monoclonais. Alguns destes anticorpos têm a capacidade de bloquear o CGRP ou o seu recetor na membrana celular, impedindo ou limitando a sua ação, diminuindo, deste modo, o número e a intensidade das crises.
Representam, estas descobertas, pequenos passos na resolução do problema. Mas, em bom rigor, reforçam a esperança de um futuro mais tranquilo para estes doentes, dando indicações claras de que não estão votados ao abandono. Por isso, o tema escolhido para assinalar, este ano, o Dia Mundial do Cérebro é um sinal da evolução da ciência, nessa área; mas também um claro indício de uma preocupação de bem-estar social, distante do isolamento de um quarto sem luz e som. António Freire (Presidente do CPC)